sábado, 10 de agosto de 2013

EDUCAÇÃO: O NASCIMENTO DA PSICOLOGIA CIENTÍFICA



A
s teorias desenvolvidas pelos primeiros filósofos registraram preocupação com problemas que ainda são de interesse geral, e de forma distinta dos empregados pelos atuais psicólogos. Entretanto, a ideia de que os métodos das ciências físicas e biológicas poderiam ser aplicados ao estudo de fenômenos mentais foi herdada do pensamento filosófico e das pesquisas fisiológicas dos séculos XVII e XIX.


Para Schultz (2001), se temos a intenção de compreender os complexos tópicos que definem e circunscrevem a psicologia de hoje, o ponto de partida adequado à perspectiva da história deste campo é o século XIX, o momento em que a psicologia se tornou uma disciplina independente com métodos de pesquisa e raciocínios teóricos característicos. Como já foi dito, somente há cerca de cem anos os psicólogos definiram o objeto de estudo da psicologia e estabeleceram seus fundamentos, confirmando assim sua independência em relação à filosofia.

Enquanto os filósofos do século passado preparavam o caminho para a abordagem experimental do funcionamento da mente, os fisiologistas atacavam independentemente os mesmos problemas a partir de outra direção, e davam largos passos rumo à compreensão dos mecanismos corporais que estão na base dos processos mentais. Seus métodos de estudo eram diferentes do procedimento filosófico, mas a eventual união dessas disciplinas apartadas – a filosofia e a fisiologia – produziu um campo de estudo em que, ao menos em seus anos de formação, se fez uma tentativa de preservar as tradições e crenças conflitantes de cada uma delas (SCHULTZ, 2001).

As contribuições neste século para a psicologia vieram de diversas origens. Advindas do idealismo alemão, destacam-se as de Johann Friedrich Herbart (1776-1841), que se parece em muito em relação às de Hegel (1770-1831), Schelling (1775-1854) e Fichte (1762-1814).

Para Rosenfeld (1993, p.85, grifo nosso), “Herbart procurou aplicar à psicologia a tese de Kant: de que há tanta ciência em cada ramo de saber quanta matemática nele houver. Daí a sua tentativa de chegar a uma pesquisa psicológica comparável às ciências naturais.”

A estrutura teórica construída por ele baseou-se numa filosofia do funcionamento da mente, o que a torna duplamente pioneira: não só por seu caráter científico, mas, também, por adotar a psicologia aplicada como eixo central da educação. Desde então, e até os dias de hoje, o pensamento pedagógico se vincula fortemente às teorias de aprendizagem e à psicologia do desenvolvimento.

Muitas das contribuições de Herbart para a psicologia e a pedagogia continuam valiosas, mas seu pensamento e a prática que dele se originou no século XIX se tornaram ultrapassados, sobretudo com o aparecimento do movimento da Escola Ativa[1]. Seu principal representante, o norte-americano John Dewey (1859-1952), fez duras críticas à doutrina herbartiana. A obra pedagógica de Herbart teve enorme influência em todo o mundo ocidental, e também no Japão, na segunda metade do século XIX. Por se basear no princípio de que a mente humana apenas apreende novos conhecimentos e só participa do aprendizado passivamente, o herbartianismo resultou num ensino que hoje qualificamos de tradicional (NOVA ESCOLA, 2010)..

Não se restringindo apenas ao campo da psicologia, Herbart, ao formular pela primeira vez a pedagogia como ciência, legou uma enorme e importante contribuição.

A influência da Anatomia e da Fisiologia

Em 1795, o astrônomo real da Inglaterra, Nevil Maskeline, percebeu que as observações feitas pelo seu assistente do tempo que uma estrela levava para passar de um ponto a outro sempre registravam um intervalo menor do que as suas, mesmo sendo chamado à atenção, os erros nas observações do assistente não só persistiram, como as diferenças se ampliaram, motivo pelo qual foi demitido.

O fato foi ignorado até que o astrônomo alemão, Friedrich Wilhelm Bessel (1784-1846), interessado por erros de medida, presumiu que as diferenças estavam ligadas a fatores pessoais, e que o mesmo deveria ocorrer nas experiências de outros astrônomos. Após comprovar a sua hipótese, Bessel concluiu que a astronomia teria de levar em consideração a natureza do observador humano, vez que suas características podiam influenciar nas observações relatadas, assim como também por todas as ciências que se apoiassem na observação (SCHULTZ, 2001).

Esse evento obrigou a comunidade científica a focalizar o papel do observador humano e a natureza da observação para entender devidamente os resultados dos seus experimentos e as conclusões que tiravam sobre a natureza do mundo físico, Os cientistas passaram a investigar os processos psicológicos da sensação e da percepção estudando os órgãos dos sentidos e os mecanismos fisiológicos mediante os quais recebemos informações acerca do mundo. Assim que os primeiros fisiologistas começaram a estudar a sensação, a psicologia estava a um passo curto e inevitável do seu surgimento (SCHULTZ, 2001, p.57, grifo nosso).   
           
O desenvolvimento da anatomia e da fisiologia cresceu de tal forma no século XIX, que seu progresso acabou por influenciar significativamente na psicologia. De maneira extraordinária, o cérebro passou a ser estudado sob a ótica inerente às funções psíquicas, galgando grandes progressos com o estudo da patologia mental, e graças ao uso da eletricidade para estimular certas áreas corticais que, assim excitadas, produziram ações específicas.

Segundo Rosenfeld (1993): em essência, o cérebro, considerado estruturalmente em relação com o corpo, é uma união complexa de nervos. A estrutura e as funções do cérebro podem por isso, somente ser entendidas se relacionadas com os nervos. Foi Charles Bell[2] (1774-1842) que verificou, em 1811, o caráter duplo do sistema nervoso, ou seja: sensorial e motor. Todavia, a verificação experimental coube a Johannes Meuller (1801-1858), um dos maiores fisiologistas do século. Assim como é famosa a sua teoria a respeito da percepção do espaço e das energias específicas dos nervos.

O estudo do sistema nervoso, graças à histologia, o estudo experimental das funções sensoriais, em conexão com o desenvolvimento da física, tomaram impulso enorme, acrescentando-se a isso os progressos na patologia mental. É evidente que a psicologia não poderia manter-se alheia a esses desenvolvimentos (ROSENFELD, 1993, p.92). 

Herbart já havia tentado aplicar as matemáticas ao estudo da vida psíquica. No entanto, foi a psicofísica que cuidou de determinar a relação existente entre um fenômeno físico, considerado como excitação causal, e a sensação como fenômeno psíquico. Entretanto, coube a E.H. Weber (1795-1878), inicialmente fisiologista e anatomista, conduzir a passagem das pesquisas em torno das sensações, principalmente tácteis e visuais, da fisiologia para a psicologia, chegando à conclusão de que: a quantidade de excitação necessária para discernir uma primeira sensação de uma segunda está em relação, constante e determinável, com a sensação inicial.

Mas, foi o filósofo Gustav Fechner (1801-1887) que, matematicamente, chegou a uma lei mais precisa sobre a sensação como o logaritmo da excitação. Tais investigações assinalaram a introdução da medida em psicologia e encontram-se na origem dos métodos que visam determinar, num dado sujeito, o menor estímulo perceptível ou a menor diferença perceptível entre dois estímulos (MUELLER, 1978).

Dito de outro modo, para a Lei Fechner-Weber: a diferença que sentimos ao aumentarmos a intensidade de uma lâmpada de 100 para 110 watts será a mesma sentida quando aumentamos a intensidade de iluminação de 1000 para 1100 watts, isto é, a percepção aumenta em progressão aritmética, enquanto o estimulo varia em progressão geométrica, permitindo a possibilidade de medida do fenômeno psicológico, o que até então era considerado impossível (BOCK. et al, 1993). 

A importância da Biologia

Integrar a mente humana inteiramente no mundo biológico, negando radicalmente o dualismo de Descartes entre o corpo e alma, significou introduzir implicitamente o evolucionismo. O princípio da evolução tornou-se, mesmo antes de Darwin (1809-1882), a ideia central de todo o pensamento de Herbert Spencer (1820-1903).

O princípio evolucionista em si é antigo. Spencer, porém, foi o primeiro a aplicá-lo sistematicamente na totalidade da sua vasta síntese filosófica e a elaborar a concepção de que a mente chegou à sua estrutura peculiar em virtude das peculiaridades ambientais (ROSENFELD, 1993).
           
Ainda segundo Rosenfeld (1993), Darwin, além de corroborar com as concepções de Spencer, influenciou imensamente a psicologia. Depois dele, nenhum cientista poderia ignorar o fato de que cada indivíduo deveria ser tomado em consideração tanto na gênese como na estrutura estática. Só assim se explicava a existência de sistemas inferiores quando o intelecto já passou a desempenhar o seu papel dominante.      

Spencer buscou no evolucionismo os mecanismos e objetivos da sociedade, e defendeu o ensino da ciência para formar adultos competitivos, aplicou à sociologia ideias que retirou das ciências naturais, criando um sistema de pensamento muito influente ao seu tempo.

No campo pedagógico, porém, Spencer fez campanha pelo ensino da ciência, combateu a interferência do Estado na educação e afirmou que o principal objetivo da escola era a construção do caráter.

De acordo com Spencer, o processo de desenvolvimento segue a mesma lei em todos os campos, da formação do universo à transformação das espécies. Seu entendimento inicial da evolução biológica se baseava na concepção errônea de que as sucessivas gerações de uma mesma espécie herdam das anteriores as características adquiridas do ambiente. Essa era a teoria do naturalista francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829), derrubada por Darwin. Que ao contrário, mostrou que o mecanismo da evolução é a seleção natural, pela qual sobrevivem as variedades animais e vegetais mais adaptáveis às condições ambientais. Tão logo conheceu as conclusões de Darwin, Spencer reformulou sua teoria.  Nos dias de hoje, é difícil encontrar seguidores fiéis do evolucionismo de Herbert Spencer, mas muito se fala de uma tendência de pensamento bem semelhante, que é chamada, um pouco caricaturalmente, de darwinismo social. A educação voltada sobretudo para formar jovens competitivos costuma estar relacionada a essa concepção de mundo (NOVA ESCOLA, 2010).
           
Assim, e para se conhecer o psiquismo humano, passa-se a ser necessário compreender os mecanismos e o funcionamento do cérebro. Neste sentido a Psicologia começou a trilhar os caminhos da Fisiologia, Neuroanatomia, Neurofisiologia e da Biologia, sendo registrado no final deste século o surgimento da Psicologia Científica, mais precisamente na Universidade de Leipzig na Alemanha. E são considerados seus fundadores: Weber (1795-1878), Fechner (1801-1889) e Wilhelm Wundt (1832-1920)[3].

Wundt recebeu o legado de Weber e Fechner, e fundou em 1879, em Leipzig, o primeiro Instituto para Psicologia Experimental do mundo. Com ele, a psicologia adquiriu plena maioridade, tornando-se, em definitivo, uma ciência autônoma, empírica. (ROSENFELD, 1993). Para (SCHULTZ, 2001), Wundt ainda determinou o objeto do estudo, o método de pesquisa, os objetivos da nova ciência, e os tópicos a serem estudados.

Por tudo, este século foi pródigo em grandes acontecimentos, viu emergir o marxismo; a revolução industrial; a teoria positivista de Comte; a ruptura da visão teocêntrica - há muito abalada profundamente, desde o nominalismo de Ockham - pelo surgimento da renascença humanista, dentre outros. No campo da Psicologia, Rosenfeld (1993) tirou as seguintes conclusões:
O século XIX marca a definitiva maioridade da psicologia como ciência autônoma. Contribuíram para essa conquista a aplicação de métodos matemáticos, pela primeira vez propostos por Herbart, e de métodos de experimentação elaborados por Weber e Fechner e estabilizados, nas formas de laboratório, por Wundt. Se a anatomia e a fisiologia concorreram particularmente para a enorme intensificação dos estudos no campo dos processos menos desenvolvidos, quer de animais, quer de crianças. A nova perspectiva contribuiu para superar o associacionismo, em parte por acentuar outros aspectos da vida psíquica em oposição à análise unilateral dos processos perceptivos, em parte por introduzir de novo o princípio do organismo de Aristóteles como um todo integrado, funcionando com fito de adaptação ao ambiente: concepção que se choca com a visão da causalidade mecânica dos associacionistas. O irracionalismo de Schopenhauer e Nietzche (e logo de Bergson e James) influi para dar destaque cada vez maior aos aspectos não conscientes e instintivos, enquanto a concepção genética inspira ao mesmo tempo o surto da psicologia diferencial.



[1] O Pragmatismo constitui uma escola de filosofia estabelecida no final do século XIX, com origens nos Estados Unidos da América, caracterizada por apenas considerar uma ideia como útil e necessária caso ela tenha efeitos práticos e valor funcional. Seus principais representantes são Charles Peirce, William James, serviu como base para o Instrumentalismo de John Dewey e mais recentemente foi reformulado por Richard Rorty. Nas palavras de William James: “O método pragmatista é primariamente um método de terminar discussões metafísicas que de outro modo seriam intermináveis.

[2] Charles Bell foi um prolífico autor e pesquisador. Ele fez sua primeira publicação de estudos pormenorizados do sistema nervoso e do cérebro, em 1811, em seu livro Uma Ideia de uma Nova Anatomia do Cérebro. Ele descreveu suas experiências com animais e como ele era o primeiro a distinguir entre nervo sensorial e nervo motor. Este livro é considerado por muitos o fundador da neurologia clínica.

[3] Wilhelm Maximilian Wundt foi um médico, filósofo e psicólogo alemão. É considerado um dos fundadores da moderna psicologia experimental junto com Ernst Heinrich Weber e Gustav Theodor Fechner.